O HOMEM DAS SOMBRAS

Por trás daquela porta, a mais branca que a policial já vira, uma cena escura, podre e feia: amarrado nu na cama havia o cadáver de uma mulher branca de aproximadamente 35 anos. Viam-se muitos cortes longos do pescoço aos joelhos, provavelmente feitos por uma faca, indicando tortura. A cavidade torácica aberta, esvaziada de órgãos. Ossos dos braços e pernas quebrados. O rosto da vítima estava contorcido, como se ela tivesse gritado enquanto morria. Morte lenta. Quando entraram, o corpo estava ali já havia uns três dias. E um fato mais impressionante: amarrada cara a cara com a vítima encontrava-se sua filha de dez anos, viva. O autor do crime? Um assassino em série que se considera descendente de Jack, o Estripador. Este é o mote de O homem das sombras, elogiada estréia literária do norte-americano Cody McFadyen.Emblema de uma realidade no limite entre o real e o virtual, Jack Jr. consegue se replicar como um vírus, já que vem inspirando psicopatas como ele. Outro detalhe contemporâneo: se o seu antepassado caçava prostitutas por ruas escuras de Londres, o Jack de agora as caça em um espaço sombrio e vasto da internet.Para caçar o assassino, Cody McFayden cria a dedicada Smoky Barrett, 40 anos, graduada em criminologia, no FBI desde 1990. Em sua folha de trabalho, montes de casos resolvidos e resenhas elogiosas. Sem dúvida, uma das melhores mulheres na história daquele órgão de investigação. Porém, como todo mundo, essa bela loura tem uma área obscura na vida. No caso de Smoky, trata-se de algo que quase a levou a um ponto de ruptura com o mundo, à loucura, ao suicídio. Ela foi torturada, estuprada, e carrega dezenas de cicatrizes do embate com um psicótico que invadiu sua casa. Ela sobreviveu, sua filha Alexa, feita refém no episódio, não.Cody McFadyen consegue, com uma personagem tão perfeita quanto trágica, abordar temas ainda pouco ventilados no universo policial: o fascínio do estupro, presente no imaginário de muitos homens, e a curiosa evolução da indústria pornográfica na internet. Numa das cartas que Jack Jr. deixa para a brilhante agente do FBI que o obceca, o leitor se depara com a seguinte informação: “Sabe qual é a palavra mais buscada na internet? Sexo. Tendo isso em mente, sabe qual é a outra palavra mais buscada? Estupro.”O The Washington Post chegou a declarar que O homem das sombras era um dos melhores romances policiais do ano. Certamente o romance renderá um ótimo roteiro para cinema, como foi o caso de Dália negra e O colecionador de ossos, com a diferença que agora temos um material que coloca no centro da trama o século XXI, com o seu mundo on-line labiríntico, com a sua gramática de videogame, que transborda para o cotidiano, para a mídia, para as relações humanas. Eis um aspecto que poucos romances policiais atuais fizeram tão bem.O homem das sombras é um livro sem palavras desperdiçadas. Cody é preciso na construção da trama e das personagens. Cada frase tem a importância e o peso necessários – nada é posto a mais ou a menos –, e a inteligência de seu criador recende nelas com a mesma força dos grandes autores do romance noir. Tanto os confins da internet quanto os da mente humana jamais serão vistos pelo leitor da mesma forma que antes. Não é clichê: o livro de McFadyen não nos larga mesmo muito tempo depois de virarmos a última página.