OS FUNERAIS DE SARDINHA

"Comei a carne dos fortes e bebei o sangue dos grandes." Ao ver, nas primeiras páginas desse romance, esta citação do profeta Ezequiel, entre outras, o leitor desavisado poderá pensar que se trata de um livro religioso. Mas não se deve acreditar na devoção de Combescot, mesmo quando ele dedica seu livro "à Santa Igreja apostólica e romana". Em Os funerais de Sardinha, padres, cardeais e papas, assim como a própria Igreja, passam por uma devassa de suas intimidades mais pérfidas e mundanas. Não se trata, no entanto, de um livro-denúncia sobre a hipocrisia da vida religiosa. Embora pareça ter verdadeira fixação no tema, Combescot dirige sua metralhadora giratória em várias direções, e não poupa ninguém. Religiosos, nobres, intelectuais, artistas, policiais e gente comum giram no texto frenético do autor, que mistura, sem constrangimentos, história com suspense e crônica de costumes. Nesta obra, os Médici – família que idealizou a Renascença italiana, ganhou fama de protetora das letras e das artes e deu vários papas à Igreja Católica – podem, em certos momentos, esbarrar no filósofo político Maquiavel ou nos escultores Sansovino, pai e filho, ou até mesmo em César, imperador de Roma. O narrador, como um verdadeiro highlander, perpassa todas as épocas até chegar aos dias atuais, em que assume a profissão do próprio autor: escritor. Porém, em Combescot nada é tão linear assim. Seu estilo incansável, de frases longas e cheios de adjetivos, nos leva de forma abrupta a percorrer enredos que se cruzam no espaço e no tempo. Nada do que possa ser dito sobre Os funerais de Sardinha é capaz de dar uma idéia desse turbilhão, ao fim do qual somos obrigados a pensar em Baudelaire, que inspirou o autor a afirmar: "A verdadeira civilização não está na pureza do verbo. Está na diminuição dos vestígios do pecado original."