PSICOLIRISMO DA TERAPIA COTIDIANA: POEMAS

Não deixa de ser sugestivo que o livro de estreia de Rita Moutinho – A Hora Quieta, de 1975 – comporte epígrafe de Lacan e contenha os versos “O que vem à tona no poema / é quase sempre a dor que não suporto”. Trinta e oito anos, sete livros e muitas dores depois vêm à tona os excelentes poemas de Psicolirismo da Terapia Cotidiana, título que dialoga com Psicopatologia da Vida Cotidiana, de Freud.Originalíssima travessia na direção da “cura” pela poesia (embora os poetas sejam sempre perpétuos doentes da beleza), o livro acentua dois traços aparentemente conflitantes, e todavia centrais, na obra de Rita: a paixão e a precisão. O lirismo confessional não prescinde do rigor de uma enunciação criativa e sofisticada em quaisquer das modalidades em que se apresente, do soneto clássico ao verso livre. Rita compraz-se na utilização de números para administrar os inadministráveis fluxos e refluxos dos sentimentos de amor, de perdas e de recomeços que lhe pontuam toda a poesia. Temos, aqui, quatro “estações” da terapia – encerrada, sabiamente, com céu “quase” limpo; há sempre uma nesga de nuvem, ou um resto de palavra, a assombrar a cena do poeta. Antes, Rita já dividira A Trança (1982) em “três madeixas + o laço”; vislumbrara Sete Movimentos da Alma (2010); e, trocando números por letras, mas sem abdicar do horizonte de uma (impossível) ordenação do real, publicara, em 1995, Vocabulário: Um Homem, de “a” a “v”. Porém, contra a tentação normativa e normalizadora, na vida e na arte, ecoa, neste livro, o verso definitivo e libertador: “Devolva-me, doutor, minha loucura”. A rigor, a loucura do poeta é seu bem intransferível, e ainda assim o mais compartilhável, por todos os que, no outro lado do texto, dele nos tornamos leitores e cúmplices, viajantes em direção a um território de sombras que também nos pertence, e estampado com tanta intensidade neste Psicolirismo da Terapia Cotidiana. A linguagem do corpo, em seus gozos e desastres, se revela plenamente no corpo da linguagem “louca” e lúcida de Rita Moutinho.Antonio Carlos Secchin