Sinopse
Desde o tempo de Freud, os psicanalistas espiam a literatura com admiração e com ambição. Admiração pelo encantamento que o ficcionista é capaz de suscitar, pela engenhosidade com que constrói sua trama de palavras; ambição de desvendar os mecanismos pelos quais ele produz suas obras, de compreender por quais vias o efeito literário desperta emoções e identificações no leitor. Freud mesmo dizia que tinha aprendido mais sobre a alma humana com Shakespeare, Goethe e Cervantes do que com os psiquiatras do seu tempo. Assim, como modelo ou como objeto, a literatura há muito brilha no horizonte da Psicanálise. Por outro lado, métodos de abordagem que uma vez foram originais tornaram-se, com o correr dos anos, desgastados e repetitivos. Às vezes, o furor interpretandi levou a um esquematismo excessivo, ou à descoberta precisamente daquilo que a teoria projetava é o caso de dizer no texto. Criou-se assim um impasse: a literatura continua a atiçar o interesse analítico, mas este não pode mais exercer-se com a ingenuidade dos tempos heróicos. A originalidade do livro de Dany Kanaan está em escapar deste impasse através de uma leitura clínica, de uma verdadeira escuta do processo de subjetivação de Clarice Lispector, tal como ele transparece nos movimentos de construção da sua escrita. O emprego da referência bíblica torna esta via ainda mais original, e o resultado é um livro sensível, erudito sem ser pedante, e ousado sem ser temerário: uma ótima entrada no universo clariceano, e além disso uma demonstração de que os instrumentos da Psicanálise, quando usados com critério, são sutis e precisos. Se o leitor acompanhá-lo nesta viagem, só terá a ganhar.