O professor Abdias deseja a morte da mulher, como solução fácil para seu caso amoroso. E é no desenrolar deste drama que Cyro dos Anjos nos faz refletir sobre todo um mundo de covardia, egoísmo e fraqueza.
Nuria Bayarri zaplana Cyro Versiani dos Anjos é colocado pelos entendidos do negócio entre a segunda geração modernista. Nascido em Montes Claros-MG, em 1906, levou a vida quase que toda como funcionário público e como professor de língua portuguesa e literatura. Nos intervalos publicava alguma coisa; mas muito pouca: dizia escrever pouco para ser um leitor mais puro. Sua obra mais famosa foi O Amanuense Belmiro, escrito ainda nos anos 30 em forma de diário, contando a história de um solteirão funcionário público que se abala com a mediocridade de sua existência e tenta sublimá-la entre memórias e amores platônicos. Um Braz Cubas versão século XX. Se, contudo, a Cyro dos Anjos falta o humor ferino de Machado de Assis, sobram-lhe poesia e lirismo. Poesia e lirismo de primeira, é bom que se diga...
Abdias é a obra de sua maturidade. Também escrito no formato de diário, conta a história de um professor de português (Cyro dos Anjos, como se vê, gostava de falar do que conhecia) de um aristocrático colégio para moças da Belo Horizonte dos anos 40 que começa a cair de amores por uma sua aluna, filha de sua paixão adolescente no rincão natal. Ele é casado, contudo, e não quer reconhecer para si mesmo que está apaixonado. Cyro dos Anjos fala disso, mas de muito mais coisas. O grande assunto do livro é nossa incapacidade latente de saber o que nos vai ao coração, o que realmente pretendemos sob a multidão de justificativas e desculpas de que nos armamos. O leitor desconfia, depois sabe muito bem o que está acontecendo, mas o protagonista se engana enquanto pode. A dosagem dos sentimentos, sua evolução durante a narrativa, a multidão de frases belas e de efeito, a poesia maravilhosa polvilhada na narrativa, tudo faz de Abdias uma obra de Mestre. Mestre com M maiúsculo sim senhor.
No entanto, pouca gente sabe. Quem entendia sabia, e tanto que Cyro dos Anjos substituiu Manuel Bandeira na Academia Brasileira de Letras. Ele era reverenciado por figuras como o próprio Manuel Bandeira e por Carlos Drummond de Andrade. Merecia mais, no meu modesto entender.
Não só para fazer justiça a Cyro dos Anjos, mas porque entendo que neste nosso tempo, em que a gente se convence facilmente das piores sandices, a leitura de Abdias e o conseqüente olhar de soslaio para o cidadão no espelho viriam muito a calhar.