Sinopse
Fahrenheit 451 (160 pp.) é uma das maiores obras-primas de ficção científica de todos os tempos (ou seria, se se tratasse, de fato, de ficção científica).
E ganha agora uma versão em quadrinhos de altíssimo nível gráfico por Tim Hamilton – autorizada e avalisada por Ray Bradbury na introdução – para o selo Globo Graphics.
Além da qualidade gráfica, o texto, com a impactante narração do personagem principal (aqui em tradução de Ricardo Lísias), é diretamente calcado na novela original.
Comparem-se as frases de abertura: “Queimar era um prazer. Era um prazer especial ver as coisas serem devoradas, ver as coisas serem enegrecidas e alteradas”; “Era um prazer atear fogo.
Era um prazer especial ver as coisas sendo consumidas, ver as coisas escurecendo e mudando de forma...”.
Fahrenheit 451 é, na verdade, uma obra de ficção política, uma distopia, ou antiutopia, na linha e na linhagem do 1984 de Orwell e do Admirável mundo novo de Huxley (com os quais forma a grande tríade das distopias literárias do século XX). 451 graus Farenheit, ou 233 graus Celsius, é a temperatura de combustão do papel comum. Logo, dos livros.
E os livros são os instrumentos que “incendeiam” as ideias.
A sociedade de Fahrenheit 451, porém, é uma sociedade que preza acima de tudo a paz.
O caminho da paz, para ela, passa por dois elementos fundamentais: um, material, o outro, espiritual.
Materialmente, trata-se de suprir as necessidades básicas dos cidadãos. Nessa sociedade afluente e racional, todos vivem em casas confortáveis, vestem-se e se alimentam satisfatoriamente, têm empregos e contam, para se entreter, com úbiquas telas de TV, por onde participam interminavelmente de programas interativos (o livro foi escrito nos anos 1940, o que o torna terrivelmente premonitório).
Mas a satisfação material não garante a paz social se houver insatisfação espiritual.
Isto é, se existirem a imaginação, a fantasia, os questionamentos, as alternativas.
Tudo aquilo de que os livros são depositários.
A história, a literatura, a filosofia, a poesia, a religião, a política, as biografias, tornam-se uma ameaça à uniformidade passiva e satisfeita.
Os livros são, portanto, proibidos.
Porém proibir os livros não elimina os já publicados.
Para isso existem os bombeiros, agentes especializados em localizar livros escondidos e em queimá-los in loco (não há necessidade de agentes para combater incêndios, pois as casas, ao contrário das mentes, são agora a prova de fogo).
Felizmente, como demonstra o surpreendente final, bombeiros com lança-chamas não podem queimar a memória...
Também uma história de amor (o amor pelos livros e o amor do bombeiro Montag pela bela, delicada e delicadamente insatisfeita Clarisse), Farenheit 451 foi filmado de modo magistral por François Truffaut em 1966.
Há duas grandes diferenças de tratamento visual entre o filme e esta graphic novel.
O futuro de Truffaut é clean, o anti-Blade Runner.
Nem multidões multiétnicas compactas, nem megalópoles misturando tempos e estéticas, mas um vasto subúrbio gramado, com casas silenciosas espalhadas por ruas vazias.
Já a versão de Tim Hamilton é equidistante entre a limpeza racionalista de Truffaut e a pletora visual de Blade Runner: sua cidade se parece, simplesmente, com as nossas.
Além disso, o foco visual de Truffaut eram as ações e os movimentos dos bombeiros e os vastos vazios da pseudocidade espalhada pelo campo: o futuro de Truffaut é melancolicamente vazio de pessoas.
A versão de Hamilton, por outro lado, com sua montagem extremamente dinâmica, é cheia de cenas em foco fechado, dando destaque, alternadamente, às queimas dos livros e à paisagem sutil das faces humanas.
Poucas vezes um grande livro se prestou tão perfeitamente à grande uma versão gráfica.