Sinopse
Mobilização social na Amazônia: a luta por justiça e por educação apresenta-nos às formas de luta postas em ação por diferentes coletividades amazônicas diante do amplo leque de desafi os e formas de opressão face aos quais se vêm defrontadas em sua vida diária. Seguindo uma importante vertente de estudos sobre aspectos da Amazônia que tem sido muitas vezes obscurecidos pela proeminência dos aspectos ambientais sobre os humanos, a coletânea nos permite conhecer as formas de ver e de dizer das coletividades da região, em si um grande mosaico de ecúmenos epitomizado pela fl oresta equatorial. Aqui, são as populações que importam primordialmente, e não o ecúmeno, e que se colocam explicitamente nos registros organizados em livro. O livro mostra-nos a omissão e a crueza da intervenção estatal, a violência das elites regionais e a brutalidade das ações desenvolvimentistas com efeitos sociais iníquos e por vezes avassaladores. Seus autores são cientistas sociais (especialmente antropólogos) e importantes ativistas da região, especialmente da Amazônia Oriental. Em textos analíticos, depoimentos, entrevistas e num ensaio fotográfi co apresentam ao leitor algumas das formas pelas quais diversos segmentos (mulheres, pais de crianças vítimas das mais variadas formas de violência, quilombolas, ribeirinhos, deslocados e atingidos por barragens, para mencionar apenas alguns) se associam e agem para enfrentar a violência, reivindicar o reconhecimento de direitos, adquirir capacidade de se fazer presente e ter participação direta em políticas de governo que os afetam. Buscam, no dizer de Paula Lacerda, romper com a inaudibilidade que lhes é imposta. E é aqui que reside a importância da presente coletânea. Os diversos registros apresentados na coletânea abordam situações resultantes da agressiva ocupação promovida pelos mecanismos de colonização induzida postos em prática pelo Estado brasileiro desde os anos 1970, em especial com a abertura da Transamazônica. O próprio Estado produz ou acirra as formas de violação de direitos das populações locais, sendo a invasão de terras tradicionalmente ocupadas um dos mais frequentes, assim como o deslocamento compulsório, a exploração servil da mão de o bra, e verdadeiras formas de apropriação da pessoa humana e de ataque à sua integridade física. As linhas de continuidade expostas trazem-nos da construção da Hidrelétrica de Tucuruí, inaugurada em 1984, à de Belo Monte, ora em construção, e motivo de grande controvérsia, grandes denúncias e demonstração por parte do governo federal de que a obra não é negociável na presente conjuntura. Os efeitos sociais profundamente danosos de grandes empreendimentos de infraestrutura em que se baseia também o desenvolvimentismo atual, repetindo em aparência o pior do regime autoritário, mostra-nos que a nação por ele engrandecida exclui muitos. Isso signifi ca então que, como muitos têm dito, esse é o mesmo desenvolvimentismo da ditadura militar? Será que é pior, como dizem outros, que parecem jamais ter vivido o que se passou? Uma marca da atualidade é sem dúvida que a altíssima concentração de renda nas mãos de grupos empreendedores e grandes corporações tem sido acompanhada por políticas de redistribuição de renda, numa tentativa de redistribuição social. Traçar inimigos e aliados nem sempre é simples; ver um monolitismo de posições onde há pluralidade e conflito de interesses e pontos de vista é no mínimo inadequado, já que no próprio governo é por vezes possível encontrar aliados. Há, no entanto uma grande diferença, que a sagaz proposta da presente coletânea capta de modo exemplar: se a Igreja e os intelectuais situados em universidades e em ONGs ainda hoje têm um papel fundamental na luta contra os efeitos sociais das intervenções governamentais, as formas de exploração e a violência das elites locais, diante dos quais o Estado age por omissão, os coletivos que se organizam para denúncia da grave situação em que vivem, para a defesa de direitos, e demandam ações de instâncias estatais são, eles próprios, os articuladores de suas falas. Como a organizadora bem sublinha, na introdução, esses coletivos e suas organizações buscam adquirir instrumentos que lhes permitam documentar o que julgam importante reter e transmitir, bem como abrir novas possibilidades de atuação. O acesso ao ensino universitário passa a ser condição importante, senão primordial na luta dessas coletividades, uma conquista importante a ser atingida. O livro é assim, ao mesmo tempo, análise e documento das situações abordadas; modo de vencer a inaudibilidade e de se fazer ouvir, registro escrito da memória das lutas contra a iniquidade, forma de fazer circular suas próprias versões do que costuma fi car (mal) retido em autos de processos e outros registros administrativos, assim como em matérias de jornais. Mas esta também é a primeira experiência de publicação de lideranças que se preparam para seguir lutando, agora portando títulos universitários. Sem sombra de dúvidas além da enorme importância para os coletivos nele representados, será também de importante uso na formação acadêmica de antropólogos e outros cientistas sociais. Oxalá muitos outros resultem e estimulem iniciativas semelhantes, de modo a termos outras falas construindo novos cenários.Antonio Carlos de Souza Lima DA-Museu Nacional/UFRJ