LUCA

Certos acontecimentos vão se desdobrando aos poucos em nossas vidas, com vagar, espalhando-se maliciosamente sobre o tempo e aquilo em que, a cada dia, nos transformamos. Pertencem, talvez, à ordem dos atos inaugurais, dos momentos originários com os quais construímos uma espécie de mitologia particular. Muitas vezes, nos esquecemos deles durante anos, até que um dia eles se precipitam sobre a nossa história, operando ali uma transformação radical. Instantes em que nos tornamos uma outra pessoa, em que nos perdemos no caminho e tropeçamos em nosso próprio desejo.É desse mau passo que Pedro nos fala, a história da sua queda, o encontro com Luca e um mergulho no rio em busca de tesouros nunca imaginados.Com a delicadeza necessária para lidar com explosivos e a potência infinita do desejo em sua descoberta, o autor nos leva para o mundo em primeira pessoa do seu herói, nos apresenta sua vida e seus medos, nos mostra, com todas as letras, a força incontrolável de uma hesitação. Sem excessos ou parcimônia, apenas o fluxo necessário das coisas e dos seres, como na vida dos bichos e das árvores, das frutas comidas no pé, da chuva, do amor. Na exata medida do que não se pode conter.Aos poucos, seguimos Pedro em sua iniciação sem ritual, uma aventura do inesperado, do terrivelmente desejado. Tornamo-nos testemunhas de um desejo que vacila, um erotismo que se revela ao ocultar-se, um homem que vai brotando aos poucos dos poros de um menino no encontro com um outro homem. Se o homoerotismo já foi o amor que não ousava dizer seu nome, é dessa ousadia que nos tornamos com Francisco, cúmplices, uma ousadia duplicada pela fala simples, pela linguagem direta, pela presença tranqüila da natureza, da chuva, da carne.É assim que Francisco nos faz saborear sua história, com uma escrita que procura dar conta da grandiosidade banal daqueles momentos da vida capazes de nos tornar o que somos, da aventura de um corpo ao revelar-se em cada palavra, nos menores gestos, em imensos sentimentos.