Sinopse
Poema que e ferro e ferramentaPoetas e poemas sempre estão na moda, mas desde o princípio deste terceiro milênio da Era Comum, na segunda década particularmente, tem sido possível experimentar uma verdadeira avalanche de poesias e de poemas, difundidos por meio de diversas mídias, e produzidos por poetas e artistas tão heterogêneos em seus estilos e temários, que leitores e críticos de literatura e de outras artes são obrigados a desenvolver novas formas de percepção sobre o que esses artistas expressam.Identificar, perceber a poesia e transformá-la, escrevê-la na forma de poema é sempre um momento difícil, de inquietação, de pulsão de vida e morte da palavra e do eu. Então vem a percepção desse mundo que não se completa mas, que ainda assim, nos faz buscar compreendê-lo, como se tudo que nele esta contido fosse pleno, embora efêmero, fosse começo, embora contínuo. Isto é o contrário do diletantismo, cuja proposição é a semi-inércia, a compreensão amena do que a existência nos dita e do que é possível ocultar da dialética entre a poesia e o poema, entre o poema e a realidade que o habita.Não existe diletantismo ou descaso nos poemas de Cizinho Afreeka reunidos neste livro de Desakato Lírico, cujo título já é um convite à inquietação e à mobilidade. Os textos, organizados em 7 intervenções, ou ações, ou capítulos, comunicam um eu poético que de vez em quando se manifesta lírico (melhor lúdico) mas, quando o faz, descarta a lira grega e exige o ressoar de atabaques, djembes, agogôs e só, quando muito ameno, marimbas. Assassino o português/(
) não quero a sua língua na minha boca. Para muito além de negar o fálico, que se apresenta explicito em outros movimentos do livro, eis ai, o poeta escreve para dizer que não quer acordo. Puxa o gatilho no poema Mato, falando que chegou e que produz literatura afrobrasileira, literatura negra de combate ao racismo. Caso ele próprio não se identifique com esses, ou tema enfrentar os cânones hegemônicos da literatura nacional e os acadêmicos, sua própria sociabilidade o denuncia pela luta que empreende contra o racismo e pelas mesmas razões de pele escritas por Lino Guedes, Luis Gama, Abdias Nascimento, Solano Trindade, Esmeralda Ribeiro, Miriam Alves, Lia Vieira, Conceição Evaristo e muitos de nós anônimos.O gatilho permanece travado e Cizinho Afreeka solta o dedo nervoso no teclado: Vamos cortar tudo que é branco?/(
) Cortar a carne/Açúcar/Farinha/Sal/Aspirina/Leite/Pó/Arroz/Tudo que faz mal.Toda poesia engajada em causas sociais resulta de uma consciência da necessidade de transformação, de mudança de determinado status quo, para uma situação de bem-estar desejada. Então, também o poeta é passível de transformação enquanto sujeito que comunica o que trabalha como matéria de consciência crítica. O poema não fica inerte: seja ele amor, exploração, infância, saudade, frustração, certeza, violência, exclusão, sexo, amizade. A questão no trato literário é como o poeta se utiliza dos recursos estilísticos para deixar fluir a construção de seu próprio estilo.Pergunta de retórica, sinestesia, metáforas, oximoro são alguns dos recursos que aparecem no texto de Cizinho Afreeka, não como se buscasse um permanente conflito com o idioma de Camões, mas sim a sua plena denúncia, de quem é obrigado a se expressar em português quando sente as emoções ferverem, atavicamente, numa das centenas de línguas africanas: Eu puto/Ela puta é obvio que se estivesse escrito numa das línguas bantu, o poeta não seria tão contido no seu dissentir.Antropofágico, sedutor, polêmico, acusador e obsceno, Desakato Lírico não se enquadra em nada disso. Seria simples demais, mole e rude demais para o leitor. É também um livro para ser discutido em grupos de formação de jovens, para refletir sobre posturas no enfrentamento ao racismo, para falar de amor e de luta à maneira da nossa gente negra. (
) Infalíveis são os poemas ministrados em doses/cavalares. É livro para levar nas viagens, ou para aproveitarmos quando nos sentirmos solitários.Nas ações de pretalhagem, o poeta se debate. Sofre inconformado sentindo que a vida lhe arranca nacos da carne e do espírito. Reage e fala confidência pra dentro de si, mas deixando que todo mundo ouça e se sinta confortável nos seus segredos confelados: (
) Quero algo sólido/Que me leve, leve às nuvens.Poeta desses tempos não pode negligenciar o elogio a mulher negra (e os reclamos também), mas se é para expressar a entrega, no que a poesia (mulher) pode ser escrita pelo nu do poeta, ou o poeta nu de fingimentos, aqui a ação do amorcentricidade é preta: As curvas perfeitas das suas ideias/Os olhos atentos da sua alma amor/E a boca carnuda dos seus argumentos/O cabelo que encrespa com tudo que é dor.As outras intervenções e movimentos do livro: luz negra, transe, multilaços e melaminados, matem os ritmos, as provocações e a consciência da função do poema: (
)boca que é pele da minha pele/boca que meu povo não repele.Certa vez um importante intelectual e escritor negro brasileiro, foi muito mal interpretado quando fez uma comparação, bastante inquietante, afirmando que uma mulher negra equivaleria a um Fusca e uma mulher branca a um Monza. Coitado dele, o coro comeu. Li este Desakato Lírico umas quatro ou cinco vezes bisbilhotando as almas dos poemas. Lá pelas tantas concluí que gosto quando o poeta expõe suas vidraças. Veja só caro leitor o que tem no movimento transe: (,,,)Não encontra rima na vida para subserviência/Muito menos para violência/Sabe ler os olhares e manter a postura.Ah. Leitor
não se iluda, a palavra de Cizinho Afreeka não é leve, é pedra. É ferro e ferramenta.* Ele Semog Escritor, poeta