Sinopse
A expressão entrega em domicílio pode ser lida de duas formas, e com isso quero dizer que este livro de Ana Luiza Rigueto tem duas caras. Num sentido mais imediato, é claro que a coisa lembra a história do delivery. Motoboys, cavalos de santo, caixeiros-viajantes esse tipo de gente percorre as distâncias enquanto seu próprio corpo passa ou é passado pelos lugares e pelas pessoas, vivas ou mortas. Assim se insinua uma promessa de felicidade: neles a experiência é um ovo que aguarda o nosso colo quente para ser chocado. Promessa que vive em Entrega em domicílio. Como em um pula-pula com você, que atualiza uma coca-cola com você de Frank OHara, refazendo a conjunção entre a perna e o olho: você me disse eu gosto / de pula-pula / vi aí uma chance, a gente gosta do vício / muito bonita eu só quero olhar você muito.Mas entrega em domicílio é também uma expressão que nasce da longa história das bandeiras brancas. Remete ao gesto de entregar-se sem defesas, como quem perde ou não quer mais a guerra. Sem guarda, a poeta oferece-se. Assim podem conviver nela os extremos, os opostos. O desejo, o gozo e a perda a um só tempo: um choro perdido alguma coisa me beija a boca. Essa escrita se abre ao amplo espectro dos possíveis e dá a ver corpos rendidos, como se estivessem sempre em casa mas é na rua que demonstram fraquezas, contradições e caprichos. E, de noite, quando tudo é um mix euforia e / pânico / vontade ou desespero, a poeta encontra às vezes um vagalumezinho, breve, lúcido, sem vícios / como são os vagalumes durante / os intervalos, e percebe que não é possível negociar com os extremos, só ceder. Ceder é desguarnecer e abrir o corpo, e é a virtude dessa poesia.A ambivalência do título ressoa a de Eros. O erotismo de alguns dos poemas funciona como um médium (ou delivery) das paixões entre coisas e pessoas, mas também entre o ocorrido e o imaginado. Nessa estreia, Ana Luiza Rigueto se apresenta com duas caras, portanto. A alegria das coisas menores perpassa todo o seu lirismo, enquanto o corpo atravessa a cidade. A intimidade inventada nos versos configura um espaço de abertura ao imprevisível da ficção de si. Dois pontos de apoio bastante firmes onde acontece o incrível: o estômago pensa / mais certeiro que a cabeça; estava a parir e não sabia achava / que era pilates. Estou avisando porque a poeta já disse que não vai avisá-los de que está mais para brincadeiras / do que para poemas.Rafael Zacca