OS DEUSES ESTÃO EMBRIAGADOS DE UÍSQUE FALSIFICADO (1 #1)
Jean Albuquerque
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Sinopse
COM A ALMA ATRAVESSADA POR UM TREM DESGOVERNADOMilton Rosendo O verbo βαχχεΰειν (bakkheúein) expressa o ser possuído por um transe sagrado, o delírio orgiástico nos cultos rendidos ao deus grego Dioniso, e tinha um caráter tanto iniciático, quanto catártico, isto é, compunha-se de um caráter revelador, que introduzia o neófito nos mistérios, e também de um aspecto purificador, que o eximia de suas mazelas. De certo modo, os ritos báquicos (ou dionisíacos) eram uma séria ameaça à aristocracia eupátrida da pólis, ao status quo, posto que representava uma espécie de disrupção dos padrões vigentes. A embriaguez era um artefato perigoso, pois depunha violentamente contra todas as formas institucionalizadas de cerceamento: a moral, a consciência reguladora, as regras do jogo social, etc. O êxtase provocado pela embriaguez nesses cultos tinha como objetivo o extravasamento do métron, ou seja a medida de cada um. Em Os deuses estão embriagados de uísque falsificado, do poeta Jean Albuquerque, temos este rito revisitado, refutado e confirmado. Se o que embriaga os deuses não é mais a ambrosia, mas o uísque falsificado, não se pode esperar da estética presente no livro o deleite bom e agradável da arte amena e de mãos dadas com o mundo; não, o que se tem nestas páginas é uma poética de total desencantamento existencial, a violência barbaramente desmedida de uma linguagem impiedosa, que devolve ao mundo sem filtros aquilo que dele absorve. O poema de Jean Albuquerque traduz a crônica apocalíptica de vidas derruídas, o cinema sujo de uma cidade sem paixão e sem fé, como se vê em Escombros:dá tempo de voltar o ombro 180º pra tua redomavocê prometeu não faltar a audiência de divórcioos presos do módulo IIcontinuam jogando cabeças pela janelatua mãe arrumou o quarto do seu irmão mais velho pararecebê-loas empresas estão abarrotadas de currículos com fotos3X4semana que vem chega a ordem de despejo Esse discurso quebrado, escrito de maneira direta e sem floreios metafóricos, descreve a realidade cariada, marginal, de um sujeito entre dois mundos, ambos hostis para ele: o presídio e o mundo livre. A violência cotidianamente presenciada no módulo II da penitenciária onde esteve detido não é pior do que o retorno à sua vida civil, marcada por uma família quebrada (só a sua mãe o espera), um relacionamento amoroso quebrado (o divórcio) e um futuro igualmente quebrado (a ordem de despejo, a falta de um trabalho). Não, leitor(a), não espere pelo alívio nessa poesia, ele não virá, não espere pela beleza, ela já não existe. O poeta deambula através da palavra pela órbita da dor, da crueza, do retrato fiel do abandono. Até mesmo o prazer carnal é reproduzido em suas imagens como um breve relâmpago rapidamente afogado em meio às trevas. O eu lírico que descamba no verso albuquerquiano não consegue unir-se a nada, nem a ninguém, nem a si mesmo. Está cindido por diversas lacunas que o atormentam, é como um papel solto no meio de uma ventania. As tentativas de integração com formas de realidade menos desfavoráveis parecem também fadadas ao esfacelo, à desconstrução, como no poema intitulado de Rio de Janeiro:no lençol da Via Lácteaqueriadistinguir-mede mimmesmo Deparar-se com outra perspectiva de vida, a fuga redentora para um lugar pleno de aparentes benesses, não revela um horizonte de possibilidades abertas para o sujeito lírico. A sua condição reificada não lhe permite esquecer seus estigmas, suas máculas. A opressão que outrora sofreu se lhe ecoa no espírito como um enguiço, uma condenação irrevogável. O reflexo que tem de si é sempre uma imagem de desconforto e desalento. Há um confessionalismo cru nessa poética, que reporta a algumas potências da lírica e da prosa do modernismo norte-americano. Teatralização objetiva de uma cotidianidade esvaziada de sentido, Os deuses estão embriagados de uísque falsificado é um elogio, se assim se pode dizer, à mentira: o uísque não é legítimo e nem os deuses o são. A única verdade é a ressaca, a náusea, o absurdo de existências depauperadas pelos prazeres baratos e destrutivos, pela superficialidade dos afetos, pela rotina alienadora, pela coisificação do outro. Esse trago amargo, ofertado pela poesia de Jean Albuquerque, abarrota os sentidos com aquelas situações que nos rodeiam todos os dias, mas que tentamos esquecer. O veneno, no entanto, também pode ser antídoto. Caro(a) leitor(a), permita-se conduzir pela dureza destes versos, permita-se sentir com a alma atravessada por um trem desgovernado.